quinta-feira, 5 de maio de 2011

Três histórias tristes e a informatização que não chega

Como advogado, poucas coisas no exercício da profissão têm sido tão desoladoras como uma visita a um Fórum, especialmente os da justiça estadual paulista. Em cada ofício judicial, montanhas de papeis se acumulam em mesas e prateleiras velhas e carcomidas, em um ambiente cujo aspecto visual é em si deprimente. Trabalhar ali deveria ser considerado atividade insalubre.

Nenhum outro órgão do Poder Judiciário espelha a dimensão humana do processo e da justiça quanto uma Vara da Família. E alguns minutos na fila do balcão de atendimento, ou, já com o umbigo nele colado, folheando um inventário que, embora muito fácil, insiste em não terminar, foram o suficiente para que eu ouvisse três curtos flashes da vida privada de brasileiros pobres e maltratados pelo Estado. Todos sem advogado, cuidavam pessoalmente de seus próprios interesses. Expunham-se abertamente aos olhos e ouvidos dos demais que rodeavam o balcão, narrando os detalhes sofridos da sua miséria pessoal.

Uma mãe, acompanhada de sua linda filha, cuja idade eu estimaria em nove ou dez anos, esperava por algo que, segundo a atendente, "estava na mesa da chefe", aguardando ser feito. "Mas já faz mais de uma semana que vim aqui, e estava na mesa da chefe", insistiu a mulher. Evidentemente pedia pensão alimentícia para a garotinha que, embora criança, parecia sentir no fundo da alma a aflição que a mãe deixava transparecer em seu semblante apertado e na voz tensa. Teria a mãe dinheiro para sustentá-la por mais uma semana? A menina observava em silêncio a mãe a falar com a atentente, com seus grandes, tristes e negros olhos apontados de baixo para cima. Que lugar seria aquele? Por que sua mãe depende tanto dali?

O próximo atendido era um trabalhador, vestindo seu padronizado traje, camisa e calças azuis, as calças um pouco mais escuras do que a camisa. Mais um desses brasileiros anônimos, que tanto poderia ser o solícito porteiro do seu condomínio ou o motorista-entregador de alguma empresa, que passa os dias pilotando ferozmente um furgão pelas ruas da cidade. Era o reverso da moeda. Teve prisão decretada por não pagar alimentos. Já deve tê-los pago, pois estava ali sem qualquer temor na casa da senhora Justiça, que o mandou prender, além do que falava-se na conversa acerca de um alvará de soltura já expedido. Mas o homem precisava de uma certidão, creio eu que seja a de objeto e pé. Seu empregador solicitava esse documento. Gente humilde sempre precisa dar muitas explicações de sua vida privada, ainda mais se passou algumas noites dormindo em uma cela. "A firma quer para segunda-feira", dizia ele, inconformado. De jeito nenhum! Informa-lhe a atendente que uma certidão dessas só fica pronta entre 40 e 60 dias. Torço para que seu empregador seja condescendente. Do contrário, conheço bem o seu destino, mesmo não tendo eu sido iluminado pelos dons da vidência: perderá o emprego, pois há uma leva de gente capaz de preenchê-lo e que não está "enrolada com a justiça", seus filhos não vão receber a pensão e ele, provavelmente sem defensor, terminará preso mais uma vez.

Seguindo o balanço do pêndulo, mais uma mulher pedia alimentos. Os fatos antecedentes já não soavam tão claros, mas pelo que pude deduzir ela já movera uma ação de alimentos anterior, que foi extinta por algum motivo... Transitou em julgado. Mas ela precisava pedir alimentos novamente, o que, segundo a atendente lhe dizia, só poderia ser requerido outra vez após o trânsito em julgado da ação anterior. Mas já não ocorreu o trânsito em julgado? Sim, mas isso não foi informado ao sistema, ao deus-todo-poderoso sistema informático. Não basta que, nos autos, o trânsito em julgado tenha sido devidamente certificado pelo funcionário responsável (o que, pela experiência ordinária, arrisco dizer que se deu uns muitos dias depois do efetivo decurso do prazo...). Diz um velho brocardo processual que "o que não está nos autos não está no mundo". Coisa superada! Vivemos na era digital: agora o certo é dizer que "o que não está no sistema não está no mundo". Mas, pelo que consegui ouvir da conversa, isso não seria nada rápido. A inserção da informação no sistema ainda levará outros muitos dias... Esta deve ser a versão high tech d'O Processo, de Kafka! Enquanto isso, espera-se que a mulher e seus filhos se alimentem de luz. O Poder Judiciário é a única entidade que eu conheço em que a informatização tornou as coisas ainda mais lentas e difíceis do que eram antes...

Seja lá que tipo de expediente aguardava feitura "na mesa da chefe", um sistema informático bem desenhado deveria realizá-lo prontamente; uma certidão deveria ser expedida com não mais do que uns poucos cliques do mouse; e, especialmente, o trânsito em julgado deveria constar do sistema a partir do exato momento em que se esvaiu o prazo para recurso. É inadmissível que tais tarefas mecânicas ainda dependam de trabalho humano, individual e específico, para que sejam executadas. O computador deveria realizá-las, automaticamente.

Ora, a depender dos 10 reais (!) constantes no orçamento estadual deste ano, destinados a informatizar o judiciário paulista, esses e muitos outros cidadãos que buscam justiça continuarão a ser assim desdenhados por parte do Estado. No estágio em que o judiciário paulista se encontra, somente uma intensa e bem executada informatização será capaz de vencer o atraso.

Enquanto isso, o Poder Judiciário nacional fica a criar autos digitais, sem demonstrar que a marcha processual neste formato - nem sempre bem projetado - seja mais rápida do que nos velhos autos em papel. E, sem uma prévia infra-estrutura que gerencie e automatize a marcha do processo, os autos digitais apenas servem para trocar seis por meia dúzia...

Como de hábito, o setor público do país sempre começa a construir a casa pelo telhado. É a parte mais visível. Afinal, expedir imediatamente uma certidão que explique que um trabalhador nada deve à justiça, a fim de assegurar o seu emprego, não é algo que ganhe as manchetes do dia...

2 comentários:

antranik disse...

Parabéns pela lucidez de sua narrativa. Perguntamos apenas até quando...

João Tobias disse...

É preciso não perder de vista a realidade do Judiciário brasileiro. Muita coisa ainda está para ser feita em prol, principalmente, dos que mais precisam da Justiça. Informatização é importante, inescapável, fundamental, mas com racionalidade, planejamento e voltado para os interesses da população. É lastimável que muitos cidadãos humildes tenham que passar pelos constrangimentos descritos no texto.