quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Power to the people: tecnologia e poder popular na sociedade da informação



Desde os anos 90, a forte expansão das tecnologias da informação e especialmente da Internet deu novas dimensões ao velho sonho de uma sociedade mais igualitária, em que a população detivesse maior parcela de poder. Mas, de quando em quando, ouvem-se vozes críticas afirmando que nada, no fundo, teria sido mudado, os centros de poder continuariam os mesmos, e tudo não passaria de uma ilusão de liberdade.

Há cerca de uns cinco anos atrás, lembro-me de ter assistido a uma palestra assim negativista, em que o conferencista comparava o poder de disseminação da informação pelos grandes portais da Internet, muitos dos quais ligados aos tradicionais veículos de comunicação, com aquele que indivíduos isoladamente teriam, de fazer-se ouvir pelo grande público. Em sua conclusão, o controle da informação continuava inabalado.

Sem dúvida, grandes centros de poder que existem em nossa sociedade, governos, grupos econômicos, imprensa, também se beneficiaram da tecnologia para expandir suas possibilidades de atuação, e normalmente o fazem com muito maior poder de fogo do que o do cidadão comum. Se este tem acesso a um computador pessoal e a um simples link doméstico, e se vale de ferramentas simples - normalmente gratuitas - de publicação e de gestão de conteúdo na Internet, os tradicionais centros de poder certamente utilizam meios muitas vezes mais potentes, rápidos... e caros.

Mas talvez resida exatamente aí o grande poder equalizador da Rede e das novas tecnologias. Não serei ingênuo em afirmar que com um computador de mil reais ou um celular subsidiado pela operadora o cidadão obtenha o mesmo poder de influência que os Governos. No entanto, o fosso diminuiu, e diminuiu muito. E a união em rede desses muitos cidadãos nunca foi tão capaz de "fazer a força", como já dizia o velho ditado popular.

Assim, apesar do meu habitual ceticismo no que tange às soluções fáceis para o mundo, é esse mesmo ceticismo que me faz crer na destacada importância da tecnologia para as modernas sociedades democráticas e para uma pulverização mais equânime do poder. O ceticismo, no caso, até contribui um pouco, ao afastar sonhos juvenis demasiadamente utópicos e aceitar a realidade das sociedades humanas, cheias de defeitos, muitos deles, aliás, advindos do próprio ser humano. É claro, portanto, que a tecnologia não será jamais um pó mágico equalizador, que por si só tornará o mundo melhor.

Democracia, igualdade e liberdade são valores que precisam ser constantemente defendidos e isso exige esforço e participação. Noutras palavras, a tecnologia não vai trazer a felicidade geral sobre uma bandeja (ou por fibras óticas...) até a porta de sua casa.

E parece também muito claro que quem detém fatias de poder político ou econômico sempre usufruirá de maiores meios de se impor sobre os seus semelhantes. Nenhum regime de governo já inventado eliminou essas diferenças de nível de poder entre os humanos. E a democracia, como já se disse, é apenas o menos pior deles...

Partindo dessa visão inicialmente cética, e sem esperar que a tecnologia venha a ser por si só uma solução redentora para os problemas da humanidade, é paradoxalmente possível enxergar que ela trouxe, sim, novas variáveis na distribuição de poder. Não há como duvidar que o cidadão comum tem, hoje, muito mais poder do que há vinte ou trinta anos atrás, tanto em termos absolutos (seja lá como se poderia medir isso...), seja em termos proporcionais em relação aos seus "concorrentes": os centros de poder político e econômico.

Se voltarmos ainda mais no tempo, basta lembrar que destruir algumas poucas máquinas de impressão de jornais, ou impedir o acesso ao papel, era o suficiente para neutralizar vozes opositoras. Em um mundo em que a informação só podia ser disseminada em razoável escala por jornais impressos, deter caras e escassas rotativas garantia o monopólio do poder de informar.

É claro que dificilmente um blog pessoal conseguirá atingir o mesmo poder de difundir informação de um grande portal de notícias, público ou privado. Mas, se anos atrás a voz de um cidadão comum e isolado era um mísero nada, hoje o "gap" entre o poder dele e o dos demais veículos foi significativamente diminuído. E a tecnologia é a mola propulsora desse novo poder popular.

Parece ser muito difícil estimar em que proporções foi reduzido o hiato de poder entre o cidadão comum e os governos e grandes organizações. Duvidaria redondamente de métodos estatísticos que se propusessem a avaliar essa proporção e reduzi-la a números percentuais... Com que escala métrica isso seria mensurado?

Porém, cada vez mais vemos fatos sociais - e é com esses fatos sociais irredutíveis a meras equações matemáticas que as Humanidades trabalham - que demonstram o quanto o poder popular vem sendo ampliado pela tecnologia, desde que, é claro, o povo demonstre disposição e iniciativa em querer participar da vida política. E há vários exemplos disso.

Este texto, na verdade, começou a ser escrito há alguns dias, quando apenas se iniciavam as rebeliões egípcias, e já foi atropelado pela impressionante rapidez dos fatos. Entre seu esboço inicial e esta publicação, uma ditadura de três décadas foi varrida do poder no Egito de modo estonteante por uma sinérgica manifestação popular. E a "bola da vez" já é a Líbia e sua ditadura quarentona. A tecnologia, claro, não provocou tudo aquilo! Foi o povo que tomou a iniciativa de se rebelar contra as ditaduras locais, e a tecnologia serviu para lhe fornecer meios de comunicacão e de organização dos protestos que não existiam há uma ou duas décadas. É difícil estimar, ainda com os fatos em movimento, o quanto a Internet e as redes sociais efetivamente contribuíram para tal mobilização, mas o simples fato de governos desesperados, antes no Egito, e agora na Líbia, bloquearem totalmente o acesso à Grande Rede como um forma de auto-defesa e de tentar conter a rebelião, já é um forte indicativo do poder que ela propiciou ao cidadão.

O polêmico Wikileaks é também uma expressão desse novo poder popular. Tenho, pessoalmente, uma posição um tanto quanto indefinida e ambígua em relação aos "feitos" do Wikileaks, reflexo da relação igualmente ambígua e de difícil delimitação entre o direito de informar e ser informado e o direito ao sigilo de certas informações, tanto pessoais, corporativas como governamentais. O choque entre esse dois valores é sem dúvida um dos grandes temas da atualidade. Entretanto, despindo a questão de qualquer juízo de valor, o Wikileaks inverteu as posições tradicionalmente mantidas entre o Estado e o cidadão, em que o primeiro sempre teve amplos meios de bisbilhotar - ainda que ilegítima ou ilegalmente - a vida privada. O Wikileaks, para dizer o mínimo, fez o Estado sentir o quanto é duro ter sido alvo de um grampo...

Outro dado importante da realidade é a criptografia. Poderoso instrumento para a proteção do sigilo das comunicações, foi ao longo da História um conhecimento estratégico e militar quase que exclusivamente detido por Governos. Está, hoje, amplamente acessível a qualquer um que queira resguardar os seus segredos e estabelecer uma comunicação sigilosa, tornando-a intransponível até mesmo para grandes agências governamentais de segurança. Por mais que um governo tirano cerceie a liberdade de expressão e de comunicação, técnicas como a criptografia, ou sua "prima" esteganografia, podem assegurar aos opositores do regime canais seguros de contato mesmo utilizando redes públicas fortemente monitoradas.

Outro incrível exemplo de poder popular proporcionado pelos computadores é o modelo de desenvolvimento de software livre em comunidades unidas pela Internet. Em uma época em que uma das principais mercadorias que geram poder e riqueza é o programa de computador, para não falar de seu significado estratégico como instrumento de controle, a sociedade está produzindo esses bens autonomamente e distribuindo-os de graça, juntamente com o conhecimento suficiente para seu desenvolvimento subsequente (o próprio código-fonte). Movimento pouco compreendido pelo cidadão comum, pelas especificidades que o tema encerra, trata-se do maior trabalho colaborativo da história da humanidade, que produz um compartilhamento público de conhecimentos técnicos e estratégicos igualmente sem precedentes.

Mas é claro que tudo o que a tecnologia oferece não afasta a necessidade de participação. Essa ainda é o diferencial que importa, e a tecnologia não a substituirá, a não ser para oferecer alternativas sombrias e totalitárias. Se o cidadão se contenta em usufruir da tecnologia apenas para passivamente ver futebol no pay-per-view, a trocar piadas nem sempre engraçadas nas redes sociais, ou para passar adiante correntes de boatos com estórias mirabolantes ou de pensamentos piegas, nada novo vai acontecer.

E, a propósito, o Brasil vem sendo levado a crer que a tecnologia também substitui a participação popular nas eleições, especialmente para fiscalizá-las. Nenhum país industrializado descobriu essa fórmula mágica ou a tecnologia suficiente para permitir tal façanha... aliás, nós também não! É um triste paradoxo. Enquanto o mundo vê a população usar da tecnologia para conseguir voz e espaço político, a mesma tecnologia no Brasil tem sido idiotizante e desmobilizadora, salvo poucas e boas exceções. Será que seremos reduzidos a bananas virtuais?