sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Este problema o "processo eletrônico" deve resolver (uma homenagem a Kafka, Welles e Kubrick)!

Em agosto de 2010, mais precisamente no saudoso Dia do Pendura, publiquei neste Blog uma mensagem intitulada O "Processo Eletrônico" vai resolver? na qual comentei que a morosidade decorrente da falta de tempo disponível para o juiz proferir uma decisão - problema que hoje muito nos aflige - não será vencida apenas pela informatização processual. E ali exibi o teor de uma "decisão" que bem ilustrava a dimensão do problema de falta de juízes suficientes (ou de processos excedentes...) que nosso Judiciário está enfrentando.

Pois ao longo desta semana que se encerra fui intimado de um outro despacho, igualmente tragicômico (grifos meus):

Fls. 520 - Ante a falta de espaço em Cartório, aguarde-se o julgamento do recurso no arquivo, cabendo às partes providenciarem o desarquivamento destes autos, no prazo de cinco dias, após a baixa do Agravo de Instrumento do Tribunal. Int.

Li isso e logo me veio à mente uma cena kafkiana, em sombrio preto e branco, em que os serventuários daquele Ofício já estariam tropeçando, sentando, escrevendo e comendo, quiçá até dormindo, sobre montanhas de autos velhos e poeirentos, que transbordam pelas portas e janelas, e vez ou outra se projetam em queda livre sobre a cabeça de algum pedestre desavisado que se arrisca a transitar pela Praça João Mendes. Orson Welles bem poderia ter filmado uma cena assim surreal...

O recurso aguardado, para melhor compreensão dos leitores, é um AIDD (Agravo de Instrumento contra Despacho Denegatório) que eu interpus em 09/09/2008, e faço questão de assinalar que falo disso com a alma despida de qualquer mágoa ou rancor, pois ao menos neste caso o cliente que defendo é o devedor do processo principal, uma execução que se iniciou em 2000... Embora julgue ter uma ponta de razão naquele recurso, nessas situações evidentemente não somos nós os que temos mais pressa. E, sem dúvida, não serei eu que me darei ao trabalho de solicitar o desarquivamento dos autos quando o recurso voltar (e nem pagar por isso), mas sim o meu nobre colega que patrocina os interesses da parte contrária.

Feitas essas explicações preliminares, e em confronto com meu texto de agosto passado, é possível afirmar que ao menos este problema relatado na intimação supra transcrita já é algo que a informatização do processo há de resolver! Falo, é claro, da falta de espaço em cartório (rogando ao Santo Byte que a informatização seja bem implementada e não venha a faltar, no futuro, espaço de armazenamento em disco para receber nossos humildes arrazoados e para hospedar a redentora sentença final!). Sim, pois, processos digitais não ocupam espaço em Cartório!

E assim, em confronto com a cena noir e melancólica que descrevi acima, já podemos visualizar aquela estética asséptica, luminosa e clean das ficções futuristas (algo como as cenas finais de "2001 Uma Odisséia no Espaço"...). Uma ampla, vazia e ofuscante sala branca, mesas limpas, nada mais do que tela, mouse e teclado sem fio fazem companhia aos servidores, vestidos em práticos trajes espaciais... enquanto os 17 milhões de processos que aguardam julgamento em SP são meros zeros e uns gravados em um sofisticado e refrigerado data center, situado a alguns muitos quilômetros dali, mas conectado pelas velozes infovias que transferem dados na velocidade da luz.

Já quanto ao problema de espera pela decisão... reitero aquela minha mensagem anterior! Sem informatizar (e sem dinheiro para informatizar...), o que urge ser feito, é claro que as coisas só vão piorar exponencialmente. Mas, para cumprir a "razoável duração do processo" prometida "a todos" em 2004 (EC nº 45), falta algo mais, bem mais, além do computador e da fibra ótica!

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Incapaz de fiscalizar os serviços das operadoras, ANATEL quer bisbilhotar o usuário de celular

Já está ficando cansativo insurgir-se contra todos os abusos do Estado brasileiro, em seus vários níveis, que além de não resolverem qualquer problema prático que a população enfrenta, proporcionam perigosos avanços sobre a intimidade e a privacidade da população.

Este é um assunto recorrente aqui neste Blog, como se lê, por exemplo, nos posts Déjà vu (fev/2009) ou Pauta de defesa da privacidade (set/2010), para mencionar apenas dois deles que considero mais significativos e para os quais remeto novamente o leitor. Nossos agentes públicos sofrem de uma patológica tara por cadastrar populações e dados privados, o que, não bastasse o mal que causa por si só para a saúde de um regime democrático e para as liberdades individuais, ainda não demonstrou qualquer retorno prático e útil para a segurança ou para a melhoria da vida dos brasileiros.

Pois agora a ANATEL está em vias de obter acesso aos registros de chamadas e valores das contas dos usuários da telefonia celular. Em nossa modesta opinião, a medida fere a intimidade e a privacidade, garantidas expressamente na Constituição Federal. Embora a Agência alegue que não terá acesso ao conteúdo das comunicações (mas era só o que faltava... é claro que ela não pode!), é importante lembrar que existem dois diferentes preceitos constitucionais que se aplicam às comunicações.

O conteúdo das comunicações é inviolável, em uma dimensão tal que se opõe até mesmo ao Poder Judiciário, segundo reza o inciso XII, do artigo 5º de nossa Carta, cuja redação é a seguinte:

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Texto de meridiana clareza, nele se encontra prevista uma das proteções mais rígidas aos direitos individuais dentre as existentes em nosso sistema jurídico, eis que se mostra imune até mesmo à ordem judicial. Exceto "para fins de investigação criminal ou instrução processual penal", e mesmo assim somente para alguns crimes mais graves que estejam previstos em lei própria (no caso, a Lei nº 9.296/1996), nem mesmo a autoridade judicial pode autorizar a escuta telefônica. Para qualquer outro fim, inclusive para instrução em processo civil, é absolutamente inaceitável escutar conversas telefônicas alheias. E, segundo corrente interpretativa a que nos filiamos, o "último caso" referido no texto, em bom português, é somente o "último caso"(!), isto é, as comunicações telefônicas. O sigilo das demais está imune até mesmo à ordem judicial. Em situações-limite, apenas, em que haja um iminente risco à vida, pode-se cogitar a quebra de todos os demais sigilos previstos neste inciso, mas tais considerações fogem do escopo destas breves linhas.

Mas a Constituição, agora no inciso X do mesmo artigo, cria uma outra proteção mais abrangente, embora menos rígida:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Dada a generalidade e amplitude do conceito de intimidade ou de vida privada, considera-se que tais bens jurídicos podem ser desprestigiados quando em confronto com outros direitos, mais relevantes, e também assegurados pelo ordenamento jurídico. Mas daí para fazer tábula rasa da garantia constitucional há uma imensa distância! Dados privados não são, de fato, protegidos por sigilo tão rígido quanto o previsto no inciso XII, mas por outro lado sigilo não haveria se qualquer um, ainda que se trate de órgão público (ou, na nossa ótica, PRINCIPALMENTE se se tratar de órgão público!), pudesse obter franco acesso a tais informações.

Se, de um lado, não são protegidos de forma absoluta e podem ser quebrados quando em confronto com valores mais relevantes, de outro lado a inviolabilidade declarada no texto constitucional exige, portanto, que a quebra do sigilo desses dados decorra de ordem fundamentada da autoridade judicial. Cabe, portanto, exclusivamente ao juiz ("ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal") contrapor os valores em choque e decidir se o sigilo se sustenta diante de uma outra pretensão juridicamente protegida, ou, se não, determinar o acesso a tais informes.

Ademais, soa razoavelmente óbvio que fiscalizar o serviço das operadoras não é um valor jurídico mais relevante do que a proteção constitucional da intimidade e da privacidade. E certamente tal mister poderia ser efetuado por outros mecanismos técnicos que não atingissem os consumidores de telefonia.

E, no tocante ao conteúdo deste inciso X, ele envolve informações e dados atinentes à intimidade e à vida privada das pessoas. Voltando o foco para o tema deste breve post, as comunicações telefônicas, parece evidente que dados de tráfego e informações cadastrais narram importantes episódios da vida privada dos indivíduos e, portanto, encontram-se cobertos pela proteção maior. Estão ali estampados com quem, por quantas vezes, e em que horas do dia ou da noite, o assinante de celular se comunica. Não é uma informação irrelevante, especialmente na moderna sociedade da informação, em que tais dados podem ser armazenados, tratados e cruzados com o apoio de potentes computadores. Acesso indiscriminado a tais dados - principalmente por órgãos públicos - configura uma perigosa afronta aos valores democráticos e republicanos (caso, a título de mero exemplo, a Agência tenha especial apreço em monitorar os dados dos opositores), além, é claro, de violar a intimidade e privacidade do cidadão comum.

Não será, portanto, um mero ato administrativo de uma Agência Reguladora que poderá quebrar o sigilo garantido pela Constituição.

Para finalizar, analisando os aspectos político-administrativos da abusiva empreitada agora carreada pela ANATEL, é desconfortante notar que essa Agência tem faltado com o cumprimento de seus deveres, que motivaram sua criação, e, incapaz de eficientemente regular os fornecedores de serviços, volta sua fúria contra os dados privados dos consumidores que ela supostamente deveria proteger. A título exemplificativo, no corrente mês de janeiro, tirei breves férias, sem porém, deixar de (tentar) me manter conectado. Não fui para o meio do mato, nem para algum rincão remoto deste nosso extenso país, mas apenas até uma grande cidade do litoral paulista, a uma hora de carro da Capital. E, para minha estupefação, mesmo naquela grande cidade a conexão 3G da minha operadora era... inoperante! A não ser de madrugada!

Cadê a ANATEL?

Não sou muito versado nos meandros técnicos da telefonia, mas mesmo assim tenho a certeza de que, para aferir a qualidade do sinal digital oferecido pelas prestadoras, a Agência não precisa coletar meus dados pessoais. Se não tiver equipamentos mais sofisticados para fazê-lo, bastaria adquirir uma linha de celular e fazer o teste por si mesma...