quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Pauta de defesa da privacidade

Passei o dia de ontem em Brasília, no evento "Advocacia e Processo Eletrônico" promovido pelo Conselho Federal da OAB. Pela manhã, painéis, com exposição de membros do Poder Judiciário. À tarde, os representantes das Comissões de tecnologia das Seccionais da Ordem (eu estava lá por SP) debateram questões relevantes para a cidadania e para a defesa das prerrogativas, diante da informatização do processo.

Um dos temas de intenso debate foi a falta de publicidade nos atuais modelos de "processo eletrônico" (felizmente, não de todos, e a lenta informatização do TJSP merece elogios, ao menos por isso...).

A publicidade é princípio constitucional, havido como garantia fundamental, mas tem sido informalmente "revogada" por sistemas informáticos que insistem em só dar acesso aos autos aos advogados da causa, devidamente cadastrados. Em minha opinião, é evidente que isso é muito irregular. É oportuno lembrar o sentido político da publicidade processual: é um potencial freio ao abuso de poder, é instrumento destinado a dar transparência ao exercício do poder pelo Judiciário.

Há preocupações legítimas com o potencial foco de ataque à privacidade que autos eletrônicos online podem causar. Mas princípios constitucionais não podem ser revogados dessa maneira, ainda que boas sejam as intenções. Se a defesa da privacidade fosse incompatível com o chamado "processo eletrônico", então o processo não poderia ser "eletrônico" (não é o que penso, dá para conciliar as coisas sem vedar a publicidade, mas isso fica para outra ocasião). Se o Judiciário optou por eliminar autos físicos e transformá-los em digitais, até que outra ordem jurídica se instale esses autos digitais devem ser públicos.

Mas essa é apenas a introdução do que eu queria dizer aqui. A privacidade é muito maltratada neste nosso país e não apenas por fatos à margem da lei: estão em curso mecanismos patrocinados pelo Estado que lhe afrontam mortalmente... mas poucos ou quase ninguém os confronta ou combate.

Quando, porém, a privacidade serve como um "curinga" que permite questionar a publicidade processual e a necessária exposição do Poder Judiciário (como a de qualquer outro órgão público) aos olhos de toda a sociedade, os problemas são supervalorizados e a bandeira de defesa da privacidade ganha um fôlego renovado (mas só para esse fim...). É algo no mínimo curioso...

Estimulado com a polêmica, resolvi brevemente enumerar o que está em curso no país para implodir a privacidade individual, de maneira muitíssimo mais danosa do que a exposição em autos online:

a) lá vem o RIC (o famigerado número único de identificação, sob forma de um documento civil único e nacional de identificação)

b) o CPF é corriqueiramente usado como número único de identificação (e irregularmente usado, porque o CPF não é documento de identificação civil: é número de cadastro de contribuinte, para quem não mais se lembra de onde ele surgiu); até para estudantes se cadastrarem no ENEM foi exigido o CPF (e muitos sequer são contribuintes...)

c) o CPF é usado em notas fiscais gerando bases de dados com padrões de gastos e consumo (e qual o controle sobre o uso disso?)

d) a ICP-Brasil (estrutura fortemente controlada pela Casa Civil da Presidência da República) criou o certificado digital único e estão pouco a pouco obrigando o seu uso por todos os brasileiros (e querem embuti-lo no RIC)

e) Juízes e procuradores públicos têm acesso direto a bases de dados com informações pessoais e privadas

f) a excessiva coleta de dados pela Receita Federal, pelo sistema denominado SPED - Sistema Público de Escrituração Digital (desnecessário lembrar que, além dos recentes escândalos, declarações de IR volta e meia estão à venda pelos camelôs do centro de SP)

g) a recente implantação de biometria nas urnas eleitorais exige cadastramento dos DEZ dedos do eleitor, mediante sistema de imagem de alta definição (cedido ao TSE pelo FBI)

h) implantação compulsória de GPS nos veículos

i) crescimento de câmeras de vigilância do trânsito ou para fins de segurança pública (sem regras claras sobre o uso, guarda e destruição dessas imagens)

E não é preciso lembrar que não há controle no país sobre a criação e uso de bases de dados com informações pessoais, que fatalmente terminam à venda por aí.

Deve haver mais, muito mais, mas é o que lembrei nos últimos minutos...

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